“Se você ama o futuro, não pode perder a chance de ajudar a criá-lo” (Ray Bradbury)

Uma entrevista memorável com o grande Ray Bradbury, publicada no excelente e extinto site NoMínimo, em 2004. Perda irreparável, o fim do NoMínimo.

“Se você ama o futuro, não pode perder a chance de ajudar a criá-lo.”
“Michael Moore é ladrão e mentiroso”
entrevista com Ray Bradbury por Ricardo Calil

02.08.2004 | Só existe uma pessoa mais irritada do que George W. Bush com “Fahrenheit 9/11”, documentário de Michael Moore que acaba de estrear no Brasil. É o escritor norte-americano Ray Bradbury, autor do livro “Fahrenheit 451”, que inspirou o título do filme. “Moore é um ladrão e um mentiroso. Ele roubou meu título e não quer devolvê-lo”, afirma Bradbury em entrevista a NoMínimo, por telefone, de Los Angeles.

“Fahrenheit 451” (1953) é um clássico da ficção científica, uma alegoria sobre uma sociedade do futuro em que obras literárias são incineradas por um governo totalitário. O título é uma referência à temperatura em que os livros queimam. Já foi adaptado para o cinema por François Truffaut em 1966 e ganhará um remake no ano que vem, com direção de Frank Darabont (“Um Sonho de Liberdade”).

“Fahrenheit 11 de Setembro” (como o filme se chama no Brasil) é o panfleto em forma de documentário que Moore dirigiu com o objetivo de tirar Bush da presidência dos Estados Unidos. O título refere-se à data dos atentados terroristas ao World Trade Center. Mas, segundo o cineasta, representa também a temperatura em que a liberdade queima.

O escritor não compra essa versão. “Não existe nenhuma relação entre o filme e o livro. Minha obra não é política, e sim filosófica”, afirma. Ele não pretende processar o cineasta, mas promete continuar protestando.

Ray Bradbury é um dos mais importantes e prolíficos autores de ficção científica da história. Além de “Fahrenheit 451”, escreveu obras fundamentais do gênero, como o romance “Crônicas Marcianas” (1950) e o conto “The Veldt” (1946). Por este último trabalho, ele é considerado o pai da realidade virtual, já que a história trata de duas crianças que aprisionam os pais em um ambiente de computador.

O escritor também é uma personalidade sui generis dentro desse universo. Nunca faz pesquisas para seus livros, tira sua inspiração de velhos quadrinhos de Flash Gordon, datilografa seus textos em uma velha máquina de escrever e vê os computadores com enorme desprezo.

“O computador é apenas a soma da máquina de escrever, do fax e do telefone. Já tenho tudo isso. Então, para quê computador? Estão tentando nos vender mais
máquinas do que precisamos”, afirma. Sem papas na língua, ele gosta de usar o mesmo adjetivo para classificar novidades tecnológicas como a Internet, os videogames e os filmes da série “Matrix”: “São todos estúpidos”.

Aos 83 anos, Bradbury continua escrevendo todos os dias e lançando novos livros a cada ano. Em um gênero marcado por mudanças rápidas, ele permanece no topo há quase 60 anos. Na entrevista a seguir, revela seu segredo: “Eu escrevo sobre seres humanos, não sobre máquinas”.

Por que o senhor ficou chateado com a referência a “Fahrenheit 451” no título do filme de Michael Moore?

Porque Moore roubou meu título. Ele nunca me pediu permissão para usá-lo. E eu tentei entrar em contato com ele durante seis meses.

Moore nunca chegou a procurá-lo?

Duas semanas atrás, um amigo encontrou-o em uma festa em Beverly Hills, deu o meu telefone e pediu para ele me ligar. Moore finalmente telefonou e pediu desculpas. Eu disse que queria meu título de volta. E ele falou que não poderia mudá-lo agora. Mas vou continuar protestando.

O senhor pensa em processá-lo?

Você já processou alguém? Demora anos, você gasta uma fortuna e nunca ganha nada.

O senhor viu o filme?

Ele nunca me convidou para assisti-lo.

Depois desse episódio, qual sua opinião sobre Moore?
Ele é um ladrão e um mentiroso.

O senhor vê alguma relação entre seu livro e o filme de Moore?

Nenhuma. Meu livro não é político. É uma reflexão filosófica, existencial.

Mas ele tem muito de crítica social, não?

Sim, mas isso não foi consciente. Escrevi o livro por diversão, mas acabou saindo mais crítico do que eu imaginava.

A ameaça à liberdade de expressão não seria um tema em comum entre o livro e o filme?

O tema do livro não é a liberdade de expressão, e sim o risco de as pessoas deixarem de se interessar pela escrita e pela leitura.

O senhor acredita que esse risco é real hoje?

Mais do que nunca. A sociedade desistiu de ensinar os jovens a ler e escrever. Não é necessário queimar livros para destruir uma cultura. Basta que as pessoas não os leiam. Os estudantes americanos chegam ao colegial sem saber ler e escrever porque foram mal ensinados. Temos que colocar todo nosso dinheiro e nossos esforços no ensino básico.

No começo da administração Bush, o senhor declarou estar animado porque o governo federal havia definido a educação como prioridade. Três anos depois, qual sua avaliação sobre o desempenho na área?

Não vi muita ação nesse sentido. Mas acho que o presidente não pode ser culpado por tudo. A educação também é responsabilidade das autoridades municipais e estaduais, dos professores e diretores de escolas.

Em um quadro mais amplo, qual sua opinião sobre o governo Bush?

Eu não falo sobre política. Sou um eleitor independente. Democratas e republicanos têm de implorar para conseguir meu voto.

Em que pé está o remake de “Fahrenheit 451”?

Já fizeram 12 versões do roteiro. A maioria delas era um lixo. Mas a versão final do Frank Darabont ficou boa. Ele é um grande roteirista e um ótimo ser humano. Pelo que sei, vão filmar no final do ano.

O senhor teve alguma participação no processo?

Escrevi uma versão do roteiro há sete anos e entreguei para o Mel Gibson, que seria o produtor. Nunca tive retorno. Acho que ele não está mais no projeto.

O que o senhor acha da versão de 1966 dirigida por François Truffaut?

É um bom filme. Gosto da direção, dos atores e da trilha sonora. Mas as cenas em que os personagens voam são horríveis. O Truffaut deixou de lado várias partes importantes do livro porque achava que não havia tecnologia na época para fazer certas coisas. Mas bastava usar um pouco de imaginação. Felizmente, o roteiro do Darabont coloca essas partes de volta.

Como foi trabalhar com John Huston no roteiro de “Moby Dick” (1956)?

Foi uma experiência fantástica. Eu aprendi a escrever roteiros adaptando o maior romance americano da história. Huston leu meu conto “The Foghorn”, achou que eu seria o sucessor de Melville e me convidou para escrever o roteiro na Irlanda. O problema é que eu nunca havia lido “Moby Dick”. Ele me deu uma noite para ler o que conseguia. “Tente me ajudar a matar a grande baleia branca!”, ele disse. Era um homem estranho, um herético, mas um grande cineasta.

O senhor tem visto filmes de ficção científica recentemente?

Muito pouco. E não vi nada interessante.

O que achou da série “Matrix”?

Comecei a assistir, mas desisti no meio. O filme está mais interessado nos efeitos especiais do que na história.

E a série “O Senhor dos Anéis”?

Muito bem filmada. Tive vontade de voltar aos meus 15 anos.

O senhor é considerado o pai da realidade virtual por causa do conto “The Veldt”. Concorda com a definição?

Não me vejo assim. Mas muitas pessoas dizem isso. Acho que o conto foi bastante inovador, porque foram necessários 50 anos para tornar possível a criação de um ambiente virtual como o que eu descrevi.

O senhor acredita que os videogames estão próximos da realidade virtual prevista no conto?

Não. Videogames são estúpidos. Eu sempre digo às pessoas que trabalham com realidade virtual para usar mais o cérebro na hora de criar games.

E a Internet? Está próxima de seu conto?

Eu não sei nada de Internet. Não tenho computador. Um amigo me deu um de presente, mas não gostei. Ele fazia muitos erros. Eu não. Mandei devolver.

O senhor ainda escreve à máquina?

Sim, tenho quatro máquinas de escrever. O computador é apenas a soma da máquina de escrever, do fax e do telefone. Já tenho tudo isso. Então, para quê um computador? Eu sou mais esperto do que ele. As pessoas não precisam de tantos computadores. Estão tentando nos vender mais máquinas do que precisamos.

Não há nenhum avanço tecnológico que o deixe entusiasmado?

Claro que há. O Projeto Genoma, por exemplo. As profissões mais importantes do mundo são a medicina, que cura os problemas do corpo, e a literatura, que cura os da alma.

Ainda existe muito preconceito contra a ficção científica como gênero literário?

Não como antigamente. “Fahrenheit 451”, por exemplo, é leitura obrigatória em milhares de escolas americanas. Para mim, a ficção científica é o gênero literário mais importante que existe. Tudo que o homem sonha é ficção, e tudo que ele inventa é ciência. Portanto, a história da humanidade é ficção científica.

Quais são os melhores autores de ficção científica da história?

Jules Verne e H.G. Wells.

O que o senhor acha dos autores “cyberpunk”, como William Gibson?

Não tenho interesse. Dei uma olhada em alguns livros. Eles não sabem escrever.

É verdade que as histórias em quadrinhos são uma grande influência na sua obra?

Claro. Ainda tenho minha coleção de “Flash Gordon” e “Buck Rogers”. Eles me ajudaram a imaginar o futuro. Foi por causa deles que decidi escrever ficção científica. Até o final do ano, vão lançar uma versão em quadrinhos de “Fahrenheit 451”. Fiquei muito orgulhoso.

Qual o maior reconhecimento que o senhor teve pela sua obra?

Uma cratera da Lua foi batizada de Dandelion em homenagem a meu livro “Dandelion Wine” (1957).

O senhor atuou como consultor na construção de parques temáticos como o Epcot Center e a EuroDisney. Como foi esse trabalho?

Foi excelente. Eu forneci metáforas para que eles construíssem os prédios dedicados à ciência. Quando caminho por essas construções, sinto como se estivesse viajando dentro do meu cérebro. Se você ama o futuro, não pode perder a chance de ajudar a criá-lo.

O senhor continua escrevendo todos os dias?

Sim. Todos os dias, há 70 anos. Acordo sempre às sete da manhã com vontade de correr para a máquina. Quer melhor maneira de me tornar imortal do que escrever todos os dias até o final da minha vida?

Qual é o segredo para se manter há tanto tempo no topo de um gênero que muda tão rapidamente?

Você tem que ser um gênio! Brincadeira… Precisa estar apaixonado pelas histórias que escreve, tem que acreditar nelas. Mas o principal é escrever sobre homens, não sobre máquinas. A ciência está sempre mudando, mas o homem não.

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